
É DE PEQUENA QUE SE FAZ A MULHER DO FUTURO: LIVRE, EMPODERADA E DO FUTEBOL
"Enquanto a mulher for forçada a acreditar que é indefesa e/ou for treinada para não registrar no consciente o que sabe ser verdade, os impulsos e dons femininos da sua psique continuarão a ser erradicados”. Esse é um trecho do livro “Mulheres Que Correm com os Lobos”, obra da autora norte-americana Clarissa Pinkola Estés. O livro é um manifesto feminista que busca resgatar a essência da mulher.
No futebol, quando as categorias juvenis se destacam, os torcedores costumam dizer que "a base vem forte", no sentido de que, no futuro, aqueles jovens poderão ocupar vaga na equipe principal e mostrar bom desempenho. Mas será que a base feminina está forte e sólida?
Em muitos aspectos da vida da mulher, ela é treinada a acreditar que é incapaz de realizar determinadas atividades. Esses ensinamentos começam a ser introduzidos ainda muito cedo, desde a infância, em diversos ambientes, como nas aulas de educação física.
Espaço fértil para trabalhar as relações de gênero, as aulas de educação física ainda dividem meninos e meninas. Se não de forma explícita, já que as aulas mistas representam o padrão atual, de forma velada, de maneiras mais sutis, mas reais.
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A LEI Nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996, popularmente conhecida por Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em seu artigo 3º, determina os princípios que devem guiar a educação no Brasil. O inciso I da lei destaca como princípio a igualdade de condições para acesso e permanência na escola. Num país em que historicamente a educação é um direito do homem, a inclusão desse princípio é um passo importante.
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A importância desse princípio se justifica pelo fato de que, há alguns anos, havia o costume de separar as aulas por sexo, de forma que meninas e meninos não compartilhassem da mesma atividade. Dentre outros fatores, o motivo dessa separação seria uma aparente diferença das possibilidades do corpo no que se refere ao movimento e rendimento nas atividades que exigem esforço físico.
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Com a mudança de cenário e a inserção de aulas mistas nos planejamentos escolares, a execução mudou, mas a essência é a mesma. As meninas não criam relação afetiva com o esporte e não desenvolvem interesse, o que resulta em autoexclusão das situações de protagonismo ou participações secundárias e coadjuvantes.
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Essas situações são consequências das expectativas criadas em relação aos diferentes gêneros, seja pelo professor ou pelos próprios alunos. O sucesso nesses casos costuma estar mais relacionados ao gênero masculino que ao feminino. O resultado é que as meninas acabam por assumir o que se espera delas e, portanto, quando a participação na atividade exige capacidade física e bom movimento corporal, elas ficam em segundo plano.
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Dados divulgados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em novembro deste ano indicam, que em 2016, quatro em cada cinco adolescentes eram sedentários. Esse é o primeiro estudo global sobre o tema, que coletou respostas de 1,6 milhões de estudantes em 146 países.
MÉDIA GLOBAL

MENINO

78%

78%
MÉDIA BRASIL
MÉDIA GLOBAL
85%

89,4%

MÉDIA BRASIL

MENINA
Fonte: Organização Mundial de Saúde (OMS); 2019.
No Brasil, os meninos mantiveram a média global, já entre as meninas, os números mostram que nove em cada 10 delas estavam sedentárias. Apesar do alto índice de sedentarismo para ambos os sexos, os números mais altos entre as meninas são mais um reflexo de como as atividades esportivas ainda são muito mais centradas no sexo masculino.

A escola costuma ser a porta de entrada para a prática de esportes. Dados do Diagnóstico Nacional do Esporte, do Ministério do Esporte, revelam que 48% dos entrevistados pela pesquisa iniciaram a vida esportiva na escola ou na universidade com a orientação de um professor. Outros 6,7% também fazem parte desse grupo, mas não contaram com a instrução de um professor.
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A pesquisa ainda aponta que o primeiro esporte praticado pela maioria dos entrevistados foi o futebol, com 58% das respostas. Em seguida aparece o vôlei, com 9,7%, a natação com 4,9% e o futsal com 3,3%.
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Os hábitos não criados na infância podem refletir diretamente na vida adulta. O resultado do Diagnóstico mostra que, em 2013, o futebol representava 6,1% da atividade física mais praticada pelo público masculino. Entre as mulheres a porcentagem reduz drasticamente para 0,5%.
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Para a pedagoga especialista em psicopedagogia, Maria José Magalhães, levar a questão de gênero para as escolas é um processo que faz parte da formação dos alunos. "A pauta é importante para que desde cedo haja respeito mútuo entre os alunos.", destaca.
Nesse quesito, o professor tem um papel fundamental. Maria, que é coordenadora pedagógica no Centro Educacional Tancredo Neves, em Camaçari (BA), ressalta que a orientação é que esses conteúdos sejam introduzidos nas aulas de maneira natural. "O professor deve trabalhar com leveza essas questões, de forma que não haja imposição do conteúdo na aula", pontua a profissional.
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Quando comecei a trabalhar, há 20 anos, existiam famílias que não queriam que as filhas participassem das aulas de educação física. Mas agora não há muito essa distinção nas aulas, e sim nas competições, onde dividem as turmas entre meninos e meninas.
Maria José Magalhães, sobre distinção de sexo nas aulas de educação física atualmente.

Nesse sentido, além do posicionamento do professor, a orientação de cada escola também fará diferença ao fim do processo, já que não há nenhuma orientação do Ministério da Educação ou da Secretaria de Educação do Estado sobre o assunto.
No Colégio Salesiano Dom Bosco, em Salvador, as aulas de educação física estão na matriz curricular de todas as séries, da educação infantil ao ensino médio. A escolha das atividades e divisão dos grupos, no entanto, fica a critério de cada professor. A professora Isa Morena, que dá aulas para a educação infantil no Colégio, do Grupo I ao 1º ano, ministra suas atividades de acordo com as necessidades, habilidades e disposição dos alunos, sem distinção de sexo.
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A professora explica que o planejamento do ano letivo precisa ser dividido entre diversas atividades e diversos esportes, de forma que não há uma regularidade de aulas de futsal, por exemplo, como uma espécie de treino. A escola, no entanto, recebe matrículas para o período oposto às aulas para variados esportes.
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Na lista de matriculados para as turmas de futsal de 2019, contando apenas os alunos da casa, são 160 crianças que praticam futebol no turno vespertino. Apenas duas são meninas. De acordo com a coordenação de esportes do Colégio, o objetivo é montar turmas femininas no ano letivo de 2020.
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Durante as aulas de educação física, quando a atividade é de futebol ou futsal, a professora Isa destaca que o comportamento das meninas varia de acordo com o interesse pelo esporte. "O tempo todo eu incentivo elas e elas também se incentivam", conta.
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Quanto aos meninos, Isa ressalta que eles demonstram interesse em participar das atividades de forma conjunta, auxiliando as meninas, em especial as que não têm muita habilidade com o esporte. Outra função que os garotos desempenham é completar o time, já que nem sempre há meninas suficientes para o jogo.
As meninas ainda têm outra oportunidade de jogar, mesmo sem as turmas definidas de futebol feminino. Isso acontece nos grandes eventos esportivos da escola, os Jogos de Integração em Pastoral Salesiana (Jinpas) e o Nordestão, competições disputadas entre os colégios da Rede.
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De acordo com a professora, os treinos de futsal só acontecem no período das competições acontecem. Por isso, algumas alunas se juntaram e pediram para formar um time para competir. Com a ajuda da professora, o time consegue treinar pouco antes dos eventos, apenas o suficiente para competir.
A educação brasileira ainda é carente em muitos setores, principalmente na rede pública. Na escola em que a pedagoga Maria José é coordenadora pedagógica, não há aulas de educação física para alunos do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental, embora a disciplina seja componente curricular obrigatório da Educação Básica, sendo sua prática facultativa ao aluno em casos específicos.
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"A matriz curricular pede, sim, as aulas de educação física. Mas não temos professor e não há uma exigência formal do município. Poucas escolas têm esse profissional para essas séries", conta a profissional. "A escola prioriza português, matemática, ciências, história e geografia. Artes e educação física ficam ao critério do professor trabalhar", completa.
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Já na rede privada, a situação é diferente. No caso dos colégios Salesianos, trata-se de uma rede reconhecida pelo incentivo ao esporte. Além da disciplina fazer parte da matriz curricular, os alunos podem fazer aulas específicas do esporte que quiserem no turno oposto às aulas, como futsal, natação, vôlei, ginástica rítmica, etc. Esse perfil cria um espaço fértil para o desenvolvimento de futuros grandes esportistas — embora ainda falte a turma feminina.
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Cristina França, coordenadora da Colégio, destaca que o papel da escola é promover a atividade física e orientar professores e alunos para uma educação pautada na reflexão, respeito e equidade. "Hoje não dá mais para pensar que o futebol é uma coisa de menino".
Mesmo com alguns empecilhos dentro das escolas, para algumas meninas, o sonho fala mais alto. Alunas de ensino fundamental e médio começaram na escola ou buscaram oportunidades em clubes da cidade para dar início a uma carreira como jogadora. Encontraram incentivo em professores, amigos e familiares e, hoje, já se imaginam como futuras grandes atletas.
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Elis França, Beatriz Cerqueira, Ana Lua Morais, Maria Christina Santos e Evellyn Monteiro são algumas das muitas meninas que sonham em jogar futebol profissional um dia ou que, simplesmente, gostam da bola e querem praticar algum esporte, sem nenhuma pretensão. Assim como essas muitas meninas por aí, elas também encontraram alguns obstáculos, mas seguem firme no sonho e na vontade de serem livres para praticarem o que quiserem. Em "O Sonho da Bola", as meninas falam sobre a experiência com o futebol na escola e outros projetos.
