top of page

NO SOFÁ OU ARQUIBANCADA, A DÉCIMA SEGUNDA JOGADORA AINDA LUTA PELO DIREITO DE TORCER
A torcida é a força motriz de qualquer time. É a presença dos torcedores que impulsiona, coloca pra frente, faz o zagueiro cortar o contra-ataque sem falta, o meia construir uma jogada bem trabalhada e o atacante matar no peito e mandar pro gol, só pra correr pro abraço das arquibancadas. É por isso que receberam o título de décimo segundo jogador, aquele que não está entre as quatro linhas, mas cumpre um importante papel fora delas.
Muitas paixões nascem na arquibancada. Esse é um dos grandes momentos de um pai com um filho: a primeira vez da dupla num estádio, com a camisa do time do coração e um placar favorável. Mas essa não é uma memória que se estende ao programa de pai e filha, menos ainda de mãe e filha. É que torcer ainda é um privilégio dos homens, mesmo com tantas meninas vestindo a camisa 12 por seus clubes.
Dizem que ir ao estádio é um hábito. Para muitas pessoas, uma tradição, algo que se carrega desde a infância. Em geral, a menina não é ensinada a gostar de futebol, o seu primeiro presente não é uma camisa do time de coração da família e assistir aos jogos não faz parte da programação do domingo. Claro que há exceções para toda regra, mas ainda assim são apenas exceções.

A construção do sujeito torcedor é pautada na masculinidade em seus diversos aspectos: virilidade, força, capacidade e conhecimento de causa. Embora o futebol seja um esporte transgeracional, multiclassista e transgenérico, ainda existem muitas hierarquias que ratificam a predominância do homem e sua representação legítima nesse espaço.
A presença da mulher no estádio, em geral, esteve sempre associada à posição de companhia. Ou seja, ela não poderia estar sozinha, precisaria/deveria estar acompanhada do pai, irmão ou namorado (sempre um homem), para lhe garantir segurança, já que aquele ambiente costuma estar relacionado à falta de civilidade, brigas e insegurança — a pura representação do homem torcedor.
Com o passar dos anos e fortalecimento dos movimentos feministas, as mulheres passaram a ser cada vez mais donas de suas vontades. É assim que elas vêm ocupando determinados espaços que, há alguns anos, não seriam possíveis ser ocupados. A presença nos estádios e arenas esportivas ainda é baixa quando comparada ao público masculino, que é o principal consumidor do esporte, mas já apresenta índices maiores que de uma década atrás.
De acordo com um levantamento de 2016 do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) em parceria com a Câmara de Dirigentes Lojistas (CNDL), 37,9% dos entrevistados não frequentavam estádios. Desse número, 41,9% eram mulheres.
A boa notícia é que este cenário está mudando e as mulheres estão cada vez mais presentes nos estádios, bares e outros ambientes relacionados ao futebol. Com o manto sagrado e a bandeira na mão, nas arquibancadas, nos barzinhos ou no sofá de casa, a mulher torcedora existe, canta, grita, briga e xinga como qualquer outro homem.
ELAS SE ORGANIZAM NAS ARQUIBANCADAS
Torcida organizada é um assunto polêmico no Brasil e no mundo. A violência e agressividade característica dos confrontos entre esse segmento da arquibancada levanta uma série de discussões quanto à legalidade desses grupos e até onde vai o direito de torcer.
Mas as mulheres encontraram uma boa saída para vencer a solidão dos estádios dessa mesma forma, se organizando. A proposta, nesses casos, é formar grupos de torcedoras dispostas a acompanhar o time, ir aos jogos, promover ações, divulgar informações, produzir conteúdos para as redes sociais etc.
A "organização do bem" tem ajudado a aumentar o número de meninas presentes em partidas de futebol ao redor do país. Diversos clubes têm suas representantes: elas levam bandeiras, produtos personalizados, cantam, vibram e torcem, se emocionam na hora do gol, reclamam do passe errado e por aí vai...
Na Bahia, os dois grandes clubes da capital têm seus movimentos que promovem e divulgam a força feminina nas arquibancadas. Pelo Esporte Clube Bahia, as Tricoloucas já têm lugar certo na Arena Fonte Nova. Se o mando de campo é do Tricolor, pode ter certeza que pelo menos uma das meninas estará no setor leste inferior, bem próximo ao gramado, com a faixa que carrega o nome do grupo nas cores do time.
Com o slogan "a arquibancada também é feminina", o grupo surgiu a partir da necessidade de encontrar companheiras para assistir aos jogos do Bahia no estádio. As Tricoloucas existem desde 2017 e, hoje, já contam com mais de 15 meninas no grupo.
A "loucura" que é ser uma torcedora foi o que deu o nome ao grupo. Presentes em todos os jogos com mando de campo em Salvador, as meninas ainda pretendem expandir essa paixão para caravanas em outros estados, quando o Bahia jogar como visitante. Conheça um pouco da história dessas torcedoras:
00:00 / 02:26


Do lado rubro-negro da força também tem mulheres tornando a arquibancada feminina. Com o perfil Elas Na Bancada, as torcedoras do Esporte Clube Vitória Clara Daltro e Pilar Andrade fortalecem o movimento de mulheres apaixonadas pelo Leão da Barra. As meninas estão sempre no Barradão, pelo menos uma delas, para acompanhar os jogos em que o time do coração é o mandante.
Além da representatividade no estádio, o perfil no instagram também é um canal de notícias sobre o Vitória. Elas publicam informações sobre atletas, contratações, próximos jogos, escalação e fazem até transmissão dos jogos em tempo real através da atualização dos stories.
O viés informativo do perfil foi um dos fatores que atraiu muitos homens para a página que, hoje, já soma mais de 14 mil seguidores. Dessa forma, além de unir mulheres em prol de uma arquibancada mais feminina, produzir conteúdo para internet e criar um canal de comunicação sobre o clube, Clara e Pilar conseguem ainda manter uma relação de credibilidade com o público masculino.

A página das meninas caiu no gosto da torcida, mas não parou por aí. Elas recebem o reconhecimento do próprio clube, que segue o perfil, jogadores e ex-jogadores do Vitória, funcionários e profissionais da imprensa esportiva, além de outras páginas que publicam conteúdos sobre o Leão.
Esse é mais um exemplo de como o torcedor é parte importante da engrenagem de um time de futebol, principalmente quando a paixão está atrelada à movimentos sociais que buscam a redução das desigualdades em todos os âmbitos, não só no esporte. Como começa um movimento assim?
00:00 / 01:30

(FOTO: DIVULGAÇÃO/ECV/MAURÍCIA DA MATTA)
Grupos como as Tricoloucas e o Elas na Bancada têm sido fundamentais para a maior presença feminina nos espaços do futebol e para a representatividade em geral da mulher no esporte. Através de perfis na internet, encontros nos estádios, grupos de whatsapp etc., as meninas conseguem se articular para comparecer aos jogos em grupo, que é a forma como elas se sentem mais seguras, e em boas companhias.
Com o reconhecimento dos times, a iniciativa se fortalece e incentiva outras mulheres, em outros clubes, a formarem seus grupos ou simplesmente se sentirem à vontade para ir sozinha onde quiserem e cada vez mais pertencentes a esses espaços, assim como os homens se sentem desde o início.
![]() | ![]() | ![]() | ![]() | ![]() |
---|---|---|---|---|
![]() | ![]() | ![]() |
O FENÔMENO DAS CHEERLEADERS
A inserção mais recente das mulheres no futebol é o universo das Cheerleaders, um fenômeno pouco conhecido no esporte no Brasil. As animadoras de torcida são tradição dos jogos universitários e de alguns esportes nos Estados Unidos, mas, no Brasil, especialmente no futebol, a atividade chegou há pouco tempo.
O "cheerleading", o ato de animar a torcida, é uma atividade que envolve dança, música e movimentos de ginástica. No Estados Unidos há uma profissionalização da torcida, que é muito famosa nos campeonatos de futebol americano, como a National Football League (NFL).
No Brasil a atividade foi introduzida como esporte em 2008; hoje é ligada à união Brasileira de Cheerleaders (UBC). Existem muitas críticas em torno do movimento no que se refere à sexualização do corpo feminino para servir de espetáculo aos homens que estão nas arquibancada, mas há muitas outras coisas por trás disso tudo.
Em geral, os grupos de animadoras de torcida no Brasil são independentes, isto é, não são funcionárias contratadas pelos seus clubes. São, normalmente, torcedoras que se reuniram e decidiram torcer de uma forma diferente, mais perto dos gramados, e empolgar os torcedores nas arquibancadas.
O fato de ser uma iniciativa das próprias mulheres, no entanto, não impede os assobios e palavras machistas que ecoam das torcidas quando as meninas passam. A exposição do corpo da mulher, ao menos no Brasil, ainda causa nos homens a sensação de que eles têm o direito de falar sobre, mesmo não tendo.
Os times da capital baiana são alguns dos clubes brasileiros que têm seus grupos de animadoras de torcida. Apesar de independentes, as meninas já são consideradas um patrimônio dos clubes, participam de ações, têm calendários organizados, são reconhecidas pela torcida etc.
No Barradão, são as Leoas da Barra que empolgam as arquibancadas. As coreografias são ensaiadas de acordo com as músicas que os torcedores cantam. Ou seja, a cada canto entoado pelas baterias, as garotas estão lá para torcer junto, dessa vez, dançando.

(FOTO: DIVULGAÇÃO/EC VITÓRIA)
Para ser uma Leoa da Barra é preciso passar por uma rigorosa seleção. De acordo com Savitri Bomfim, coordenadora do grupo, a primeira parte da seletiva é uma conversa pelo WhatsApp, em que a candidata precisa contar a sua relação com o time, e o motivo pelo qual quer ser uma integrante do grupo. Além disso, é preciso enviar uma foto com a camisa do Vitória.
Depois disso, as selecionadas passam pela fase presencial da seletiva, quando é avaliado o desempenho como dançarina. Savitri conta que as meninas devem repetir os passos que as integrantes fazem em campo, mas podem trazer outras apresentações. "Deixamos a opção de apresentar alguma dança autoral".
A última fase é a mais importante, em que as candidatas farão um teste de conhecimentos sobre o clube. A média das fases determinará a nota final e as selecionadas para integrar o grupo das Leoas da Barra. Atualmente são 29 Leoas ativas e aptas a participar dos jogos.
"
Ser uma Leoa é gratificante. Além de apoiar o clube de perto, temos a oportunidade de conhecer novas garotas, fazer amizades para a vida toda, criar um espetáculo nos jogos e estar mais próximas de toda a torcida do Vitória.

Savitri Bomfim, sobre a sensação de ser uma líder de torcida do Vitória.
Após sete anos de fundação do grupo, as meninas continuam independentes. A relação com o Vitória é apenas sobre os jogos em que elas atuam e ações promovidas pelo clube em parcerias. Por isso, quem pensar em remuneração pode desistir de ser uma Leoa; o clube banca apenas o transporte delas. Para ser uma integrante, é preciso "determinação, amor ao Vitória e persistência", define Savitri.
Mas, como nem tudo são flores, a coordenadora ainda destaca que exitem alguns pontos negativos para a atividade. "Os custos dos materiais são bastante elevados e ainda há o machismo dentro do futebol, ainda que tenha melhorado bastante com o passar dos anos, mesmo a passos lentos", diz.
Pelo Bahia, quem anima o jogo são as Tricolíderes. A ideia de montar uma equipe de animadoras surgiu em 2007, mas, com a tragédia que aconteceu na Fonte Nova e vitimou 12 pessoas naquele mesmo ano, o projeto foi adiado.
Em 2011, no entanto, a ideia saiu do papel e se concretizou. "Lançamos a ideia numa comunidade no Orkut", conta Julia Azevedo, atual líder do grupo."Em 2012 animamos o primeiro jogo em campo e estamos aqui até hoje.
Em 2014, o clube passou a dar alguma atenção às meninas, após a intervenção que sofreu na gestão do ex-presidente Marcelo Guimarães Filho. "Passou a intervir em questões administrativas e ajudar a gente com liberações da Federação Bahiana de Futebol (FBF)", lembra Júlia. Entre 2011 e 2016, no entanto, as meninas eram completamente independentes.
Só em 2017 o Bahia resolveu assumir a marca e assinar um contrato com as garotas. Assim, passaram a ajudar com os uniformes, transportes etc. Atualmente 49 Tricolíderes compõem o quadro e se revezam entre os jogos com mando de campo do clube.
A seleção para o grupo é anual e o primeiro passo para inscrição é enviar um e-mail. A mensagem deve conter os dados pessoais da candidata, informações sobre disponibilidade de horários e fotos — preferencialmente uniformizada e/ou no estádio. Além disso, é preciso contar um pouco sobre si e os motivos pelos quais quer fazer parte do grupo.
Depois dessa fase, um grupo grande é escolhido para uma seletiva presencial, onde elas passam por um teste de dança e um teste de conhecimentos sobre o clube. "Em 2019 o grupo recebeu 450 inscrições. Dessas, 160 foram para o teste presencial. Júlia lembra que, no início, chegaram a ter apenas 4 meninas. "Ninguém acreditava que daria certo".
A última fase é a mais importante e mais difícil: adaptação. É preciso avaliar quem se adapta ao grupo, horários, regras e sacrifícios, quem se desenvolve bem e convive bem com as colegas. "Algumas meninas, quando chegam no nosso convívio, não se adaptam. Tem meninas que não entendem as hierarquias, as regras do grupo. Se alguma menina tem alguma atitude que vai de encontro ao que a gente quer para o grupo, chamamos atenção, e tem quem não goste", pontua.

(FOTO: DIVULGAÇÃO/EC BAHIA/FELIPE OLIVEIRA)
A líder conta que a escolha de fazer parte do grupo veio do desejo de unir duas coisas que ela ama: a dança e o futebol. "Não há sensação melhor que torcer ali de perto, estar dentro do clube, viver o Bahia. Acho que muitas meninas sonham em fazer parte de um grupo de líder de torcida", afirma.
Para ela, para ser uma líder de torcida não pode faltar disposição. "As vezes é muito complicado animar um jogo depois de um dia inteiro de trabalho, abdicar de um fim de semana inteiro para ensaios e jogos. Haja disposição para aguentar o pique da vida corrida com o grupo".
Júlia Azevedo, sobre os pontos negativos da atividade de animação.

Ainda existe muito preconceito, machismo e achismo. Isso desanima, às vezes. Mas a gente aprendeu a lidar com certos tipos de comentários. A gente sabe da nossa história. Muita coisa que a gente faz, muito torcedor não faria.
"
00:00 / 01:01
Essas meninas estão em outra esfera do universo de uma torcedora. Além da paixão, da torcida, do cartão de sócio-torcedor, das idas ao estádio, elas estão próximas do clube, convivem com os jogadores, têm o carinho da torcida, abdicam de muitas coisas da rotina para viver a experiência da animação e o principal, sem receber nada em troca além da pura e simples oportunidade de torcer.
Ser uma torcedora é romper preconceitos e medos, "matar um leão por jogo" (sem trocadilhos clubistas), lutar todos os dias pelo direito de torcer sem precisar passar por testes de conhecimento sobre o clube, a história de seus jogadores, o esquema tático escolhido para uma final histórica. Não é isso que define uma torcedora, e nem um torcedor. Torcida não é fanatismo, nem uma competição de quem entende mais; é um direito de todos, sem distinção de sexo.
bottom of page