
BOLA NA REDE PRA FAZER O GOL, QUEM NÃO SONHOU EM SER UM JOGADOR DE FUTEBOL?
Composição de Nando Reis e Samuel Rosa, É Uma Partida de Futebol, lançada em 1996, faz um questionamento enquanto narra as maravilhas de um jogo: quem não sonhou em ser um jogador de futebol? Afinal, esse é o sonho de muitos meninos Brasil afora, e meninas também, mas essas ainda são chutadas para escanteio no país do futebol.
​
O "camisa dez e faixa", na linguagem popular, é o atleta de destaque, que decide o jogo, dono da camisa mais pesada do elenco e que, volta e meia, posa de capitão da equipe. No futebol feminino, todas as jogadoras são "dez e faixa" porque todas precisam ser acima da média para estar sob atenção dos holofotes.
​
O Brasil descobriu o futebol feminino há pouco tempo, apesar da luta de anos, e se deu conta de que é precário. A história não deixa mentir: são muitos anos lutando pela oportunidade, depois pela legalidade e, hoje, pelo reconhecimento. Enquanto os homens estrelam grandes campeonatos, lotam estádios e celebram finais assistidas no mundo inteiro, mesmo com jogadores nem tão bons assim, as "dez e faixa" ainda precisam lidar com o amadorismo com que os cartolas lidam com os seus sonhos.
A HISTÓRIA DO FUTEBOL FEMININO NO BRASIL

O problema é muito mais genuíno do que o desinteresse do público em geral pela categoria feminina. Não há investimento em divisões de base para formar novas gerações de atletas, não há interesse dos clubes, federações e confederações em montar equipes e promover campeonatos profissionais e não há segurança profissional: quantas jogadoras de futebol no Brasil vivem do esporte?
​
Dados do Ministério do Esporte revelam que, em 2013, 92,9% das mulheres entrevistadas pela pesquisa não havia participado de nenhum tipo de competição esportiva - oficial ou não. No caso dos homens, a porcentagem reduz para 88,1%.
PARTICIPAÇÕES EM COMPETIÇÕES POR GÊNERO EM 2013



Fonte: Diagnóstico Nacional do Futebol; 2013, Ministério do Esporte.
A realidade dos clubes brasileiros varia entre falta de interesse e falta de verba. Como um dos principais problemas é o endividamento das entidades esportivas com a União, o governo brasileiro sancionou em 2015, ainda sob o comando de Dilma Roussef, a lei de renegociação de dívidas, sob a tutela do Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro, popularmente conhecido como Profut.
Esse programa propõe a avaliação das dívidas dos clubes brasileiros desde que eles preencham alguns requisitos, como a manutenção de obrigações trabalhistas e tributárias, transparência nos balancetes, dentre outros. Vale ressaltar que entre os requisitos elencados está o investimento mínimo no futebol feminino.
Esses requisitos são supervisionados pela Autoridade Pública de Governança do Futebol (APFUT). É esse o órgão que fiscaliza os clubes a fim de garantir que os critérios do Profut estão sendo cumpridos.
​
Outro passo importante é um pouco mais recente. No ano em que se completam 40 anos da revogação do decreto-lei que proibia as meninas de jogaram bola no Brasil, instituições da América Latina criaram estratégias para que haja investimento na categoria no continente.
​
A partir de 2019 todos os clubes da Série A do Campeonato Brasileiro passaram a ser obrigados pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) a ter duas equipes femininas, sendo uma adulta e uma de base. Essa é uma orientação da Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) e a mesma regra é aplicada para a Copa Libertadores e a Copa Sul-Americana.
​
Com a obrigação, os clubes e seus dirigentes passam a ter a responsabilidade de montar, manter e tornar lucrativo o futebol feminino, coisa que ainda não é no Brasil. A decisão da CBF causou burburinho entre os clubes, que não aceitaram de bom grado a proposta, alegando justamente a problemática financeira de montar equipes que não dão retorno, mas outros seguiram caminhos mais amistosos.
​
É o caso do Esporte Clube Bahia, que começou a jornada firmando uma parceria com a Associação Desportiva Lusaca, em novembro do ano passado. O tricolor disputou a Série A-2 do Brasileirão feminino desse ano, mas foi eliminado nas quartas de final da competição.
​
Em agosto o clube baiano anunciou o fim da parceria com o Lusaca e em outubro estreou no Campeonato Baiano feminino com time próprio: atletas contratadas e oficialmente funcionárias do clube, assim como os homens. Fernanda Fonseca, goleira do Bahia, é uma das atletas mais rodadas do elenco e vive o que pode se chamar de auge do futebol feminino no Brasil - e no tricolor baiano.
Fernanda é uma grande líder dentro de campo, tanto nos jogos quanto nos treinos, incentivando as outras meninas o tempo inteiro. Aos 34 anos, a goleira já passou por muitas dificuldades na carreira de atleta, como conta. "Minha família foi sempre muito unida, sempre esteve todo mundo junto. Aí fui pra cidade grande, primeira vez que morei com pessoas que eu nunca nem vi na vida", lembra.
​
Hoje, jogando profissionalmente num clube de boa estrutura e tendo passado inclusive por Seleção Brasileira, Fernanda acredita que a maior dificuldade que ela enfrenta seja um problema coletivo: o amadorismo e a escassez dos campeonatos regionais e nacionais de futebol feminino. E há, para ela, um responsável direto por esse problema: a CBF.
Apesar dos altos e baixos e muitos problemas que uma jogadora de futebol precisa enfrentar, sempre há sonhos, inspirações e conquistas. Não é diferente com a goleira, que escolheu outras atletas da mesma posição em que joga para admirar e se inspirar. "Eu tinha como inspiração a Andreia Suntaque, desde criança me inspirei muito nela", conta.
​

Eu acho que o estágio que eu conquistei no futebol feminino, muitas meninas não puderam conquistar. Uma coisa que a gente briga muito é por ser reconhecida, e hoje a gente tenta ser tratada com igualdade. Essa foi uma das minhas maiores brigas desde o início e aqui a gente tenta realizar isso.
"
Fernanda Fonseca sobre reconhecimento na carreira.
Dificuldades, oportunidades, confiança, credibilidade, talento e trabalho, ao longo da carreira, construíram a goleira de hoje: estável, realizada, reconhecida e, principalmente, jogadora de futebol no Brasil, o que, para ela, ainda é um desafio. Fernanda destaca que o futebol brasileiro, na categoria feminina, ainda é movido à base de coerção, "apenas para vestir a camisa" da causa, como aponta a montagem de equipes femininas pelos clubes do país após a decisão da Conmebol e da CBF.
​
Ainda há muita resistência por parte das entidades esportivas no que se refere à montagem de equipes e campeonatos no país. A principal justificativa é a falta de retorno financeiro, o que é uma verdade incontestável, mas para que o brasileiro passe a gostar e acompanhar o futebol feminino e o negócio se torne viável, é preciso que existam competições atrativas, equipes bem montadas e investimentos ao redor do país para que a engrenagem aconteça.
Na Bahia, o Governo do Estado, por meio da Superintendência dos Desportos do Estado da Bahia (SUDESB), promove alguns programas de incentivo ao futebol feminino, pensando principalmente nos clubes do interior do estado — e até mesmo os da capital que não estão no mesmo patamar financeiro que Bahia e Vitória, por exemplo.
​
Um desses projetos é o Esporte na Cidade, iniciativa que oferta 100 vagas para meninas de 7 a 17 anos para aulas gratuitas às segundas e quartas-feiras (manhã e tarde) de futebol de campo no Estádio Roberto Santos, em Salvador. De acordo com a assessoria de imprensa do órgão, esse é um projeto piloto para uma política que a SUDESB deve apoiar em 2020.
​
Outro projeto, este em fase final de preparação, é a Copa Loreta Valadares, competição feminina que pretende reunir 20 equipes da região metropolitana de Salvador. Segundo a SUDESB, o projeto deve ser realizado ainda em 2019.
QUEM FOI LORETA VALADARES?

LORETA KIEFER VALADARES
(1943 - 2004)

Brasileira, nascida em Porto Alegre (RS) e criada em Salvador (BA) desde os 6 anos.

Militante, lutou contra o Estado na Ditadura Militar, quando foi presa e torturada.

Tornou-se professora de Ciencias Politicas e Filosofia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Foi um nome de destaque na defesa pelas causas feministas na Bahia
A realização da Copa Loreta Valadares é parte do que a SUDESB chama de estratégia para preencher a lacuna do apoio ao futebol feminino na Bahia. Algumas ações mais organizadas já estão cumprindo esse papel, como o empréstimo do Estádio Roberto Santos para treinos de equipes como o São Francisco do Conde e programação de um jogo de futebol feminino como preliminar à final da Copa 2 de Julho, competição masculina de divisões de base, em julho.
​
O apoio ao futebol feminino é fundamental na Bahia, inclusive à nível de competições oficiais, como o Campeonato Baiano, já que a maioria dos clubes não têm receita para bancar nem mesmo suas equipes masculinas. No estado, muitas equipes femininas foram formadas através de parcerias entre os clubes e outras instituição, como o Galícia/FTC.
​
A equipe feminina do Galícia, clube tradicional de Salvador, deriva de uma parceria com a Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC). Além do campo, as meninas competem também nas quadras, pelo futsal, na equipe que leva o mesmo nome. Algumas das atletas são alunas da FTC e formandas em cursos como Educação Física, Fisioterapia e Nutrição.

Uma dessas atletas é Ana Rosa Andrade, estudante de educação física e atacante do Galícia/FTC. Aos 26 anos, Aninha, como é conhecida no meio, já passou por muitos clubes do estado e continua na luta por um futebol igual em direitos para homens e mulheres.
Como para a maioria das mulheres que escolhem o futebol como carreira, o início foi difícil para que a família de Ana aceitasse a escolha da garota de ser jogadora de futebol. "Para ela eu era uma princesa", contou sobre o sentimento da mãe quando decidiu calçar as chuteiras.
​
O talento e o empenho da garota, no entanto, foram o bastante para que a família e os amigos a enxergassem como uma atleta. Antes nos asfaltos, hoje Ana corre pelos estádios da Bahia e pode dizer que tem o apoio e o carinho de todos que estão ao seu redor. A mãe, que antes não aceitava a relação da filha com a bola, hoje é a sua grande incentivadora. "Se eu preciso de um transporte para ir treinar, minha mãe me dá. Se eu preciso de uma chuteira nova, ela compra pra mim", reconhece.
Além da carreira de atleta, Ana está no sétimo semestre do curso de Educação Física. Assim como a goleira Fernanda, a atacante do Galícia precisou escolher um outro caminho como espécie de plano B, caso não desse certo a vida no esporte. As duas jogadoras, cada uma em uma realidade diferente dentro de seus clubes, precisam lidar com o fato de que sobreviver do futebol no Brasil ainda é uma lenda para a mulher.
​
É fácil observar como essa não é a realidade do homem que sonha em ser jogador de futebol. Normalmente não há a escolha por outras alternativas e, desde cedo, ainda nas divisões de base, o jogador já começa a ser remunerado, ainda que aos poucos, o que lhe traz uma segurança na profissão. Não é assim que funciona para a mulher.
​
​

"
Independente de correr atrás do nosso sonho, que é a bola, acho que o estudo está acima de tudo. A gente tem que procurar se profissionalizar em alguma coisa para que, futuramente, caso não venha a acontecer o futebol, a gente possa ingressar em outra área, seguir nossa vida de outra maneira.
Ana Rosa Andrade sobre o investimentos nos estudos.
Ana e Fernanda, duas mulheres, atletas e experientes. Apesar das semelhanças, o momento atual que cada uma delas vive é muito diferente. Enquanto Fernanda é uma funcionária, assim como os homens, do Bahia, clube da primeira divisão do Campeonato Brasileiro, progressista financeiramente e ideologicamente, Ana atua pelo Galícia, equipe que segue sem muitas perspectivas pela falta de estrutura e investimento.

FINAL DO CAMPEONATO BAIANO FEMININO 2018 VITÓRIA X LUSACA (FOTO: DIVULGAÇÃO/ECV/MAURÍCIA DA MATTA)